A encruzilhada é uma poderosa tecnologia afro-brasileira que simboliza um espaço de convergência de saberes e práticas capazes de desafiar as estruturas coloniais e eurocêntricas. Representando a abertura de múltiplos caminhos, ela reúne e mescla diferentes histórias e tecnologias de resistência, como os quilombos, o candomblé e as festas populares.

No programa de equidade e inclusão da Associação Escola da Cidade, a Encruzilhada ocupa um papel central, trazendo consigo essa força de construir múltiplos trajetos, ampliar possibilidades epistemológicas e valorizar a diversidade interseccional dos sujeitos. Inspirado em Exu, o guardião das encruzilhadas, o programa convida sua comunidade a uma reflexão constante sobre ações, escolhas e projetos, promovendo o encontro de diferentes saberes e a criação de um espaço fluido e acolhedor, onde histórias, corpos, culturas e tecnologias possam se misturar e compartilhar experiências.

A encruzilhada torna-se, assim, um território tanto simbólico quanto concreto, que viabiliza o cruzamento e a troca entre epistemologias ancestrais, gerando novas potências de realização a cada bifurcação. Em contraste com a linearidade do pensamento colonial, que busca um mundo simplificado e confortável, a encruzilhada expande horizontes, desafiando-nos a imaginar novos mundos e a abrir caminhos para a inclusão.

Ela propõe uma vivência de descolonização contínua, onde representatividade e diversidade ocupam o centro da formação de sujeitos múltiplos, promovendo uma educação e uma sociedade que reflitam o dinamismo e a pluralidade da vida, rompendo com padrões opressivos e homogeneizadores.

“Encruzilhadas” como lugar de encanto e transformação

por Prof. Fabrício Forganes Santos (Escola da Cidade)

 

“Certo dia, numa encruzilhada, Ifá [a divindade da adivinhação] deparou com uma linda mulher.

Ela era diferente de qualquer mulher que ele conhecera até então. Era tão misteriosa quanto bela.

Ao que parecia, ninguém sabia quem era ela. Ninguém sabia o que quer que fosse de sua família e antecedentes.

Parecia ter surgido do nada.

Era vista somente nas encruzilhadas”.

Mito Exu é uma mulher na encruzilhada que ensina o oráculo a Ifá. (Nigéria, 1978)[1]

“Encruzilhadas” é o programa de equidade e inclusão de apoio aos estudantes de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade. O nome escolhido remete à complexidade dos caminhos que esses estudantes percorrem em busca de suas graduações, marcados por encontros e desencontros que promovem desafios e potenciais ajustes de rota.

São Paulo, cidade em que a Escola da Cidade está localizada, em sua essência, se configura como uma encruzilhada.  Embora fundada no lugar onde se cruzavam várias rotas – o que já justifica o uso do termo no texto publicado em 1960 por Sérgio Buarque de Hollanda[2] –, a história da cidade não se restringiu às trajetórias geográficas, se tornando pano de fundo de histórias de vidas e de culturas diversas entrecruzadas: essa certamente é a principal influência para a vivacidade presente na bagagem dos alunos que escolhem a EC para estudar.

No tocante ao ensino, a encruzilhada é uma metáfora potente que ressignifica o próprio ato de aprender e de construir conhecimento. Na tradição africana, a encruzilhada é entendida como um ponto de intersecção entre diferentes realidades, um misterioso espaço de confluência onde o presente, o passado e o futuro se encontram. A cruz dos africanos bacongos, chamada Dikenga Dia Kongo, exemplifica este entendimento a partir de seu poder simbólico, vez que reflete graficamente a conexão entre as dimensões materiais e espirituais da vida, propondo uma leitura não linear da existência humana.

A visão afrocentrada da encruzilhada, que rejeita a dicotomia entre o certo e o errado, entre o início e o fim, nos convida a [re]pensar o ato de estudar e de criar de uma maneira menos ortodoxa, mais aberta às possibilidades. A encruzilhada nesta perspectiva não é o fim de um ciclo – como pensavam os invasores europeus ao se apropriarem da cruz para ratificar a expropriação de territórios –, mas o meio de um processo contínuo de aprendizado e transformação. Ela é, assim, um convite para o indivíduo avançar, questionando e construindo novos sentidos e possibilidades, tanto para sua formação acadêmica quanto para sua trajetória pessoal e profissional no mundo. Para os estudantes da EC, o projeto “Encruzilhadas” traz a oportunidade de navegar por essa complexidade, provocando-os a criar novos e belos caminhos com seus referidos cruzos, objetivando a renovação das nossas cidades.

Ao acolher e apoiar os estudantes em suas trajetórias, a EC através do “Encruzilhadas” também os convida a refletir sobre as múltiplas possibilidades acadêmicas e profissionais que se abrem diante deles: a encruzilhada é o lugar onde novos caminhos surgem, onde as escolhas podem ser re[ori]entadas e reinter[preta]das. Neste sentido, o “Encruzilhadas” se torna mais que um ponto de passagem, ele é um espaço de potência epistemológica, capaz de reconfigurar o olhar sobre o mundo e sobre o próprio futuro da arquitetura, do urbanismo e do design.

O “Encruzilhadas” visa, portanto, ser um espaço de acolhimento e de formação integral. Ao propiciar apoio aos estudantes em termos emocionais e intelectuais, buscamos criar um ambiente propício para o florescimento de novas perspectivas e formas de viver e atuar no mundo. Na encruzilhada os caminhos se multiplicam, e é exatamente nesse movimento que a verdadeira transformação acontece. Laroiê!

[1] In: SILVA, Vagner Gonçalves da. Exu: um deus afro-atlântico no Brasil. São Paulo, EDUSP, 2022, p. 494
[2] In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Movimentos da população de São Paulo no século XVIII. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, n° 1, dezembro, p. 55-111, 1966